Sem título, 2023
cerâmica e suporte de vidro e madeira
dimensões variadas
As cenas cotidianas também são relíquias
Meu avô criava pássaros, galinhas, marrecos, corujas… Diz-se que faz parte do bem estar de algumas aves criadas em cativeiro usar-se um ovo-index nos seus períodos reprodutivos. Esse ovo, feito de diversos materiais, como resina ou até gesso, tem dois principais propósitos. Primeiro, serve para designar uma possível localidade para o ninho da ave, após um período sem utilizar seu ninho, é colocado o ovo index nele para que a galinha o enxergue e volte a utilizar o mesmo ninho. Outra utilidade seria possibilitar a mesma duração de chocagem para ovos colocados em datas diferentes, assim, não prevalecendo filhotes maiores por alguns dias na alimentação: cada ovo colocado, digamos, em dias diferentes é guardado e substituído por um ovo index, quando terminada a postura de ovos, todos voltam ao ninho para serem chocados pelo mesmo período de tempo.
Meu avô produzia seus próprios ovos falsos a partir de um molde de gesso. Ele morreu muitos anos antes que eu nascesse, porém algumas relíquias de sua vida permaneceram em minha família. Sua herança foram uma salamandra a lenha, um copo lava-olhos, os moldes de gesso, entre outras pequenas miudezas.
Recentemente, cerca de 40 anos após a sua morte, redescobri esses pequenos moldes de gesso. Aleatoriamente ou pela força do destino, se é que ele existe, hoje em dia trabalho com cerâmica, e apesar de não usar moldes de gesso em minha produção, aqueles moldes me instigaram. Com uma pequena quantidade de argila fui preenchendo o molde, enquanto meus dedos tateavam a vida de alguém que não conheci, mas que de certa forma, divide sua vida também comigo, seus traumas e suas angústias. Aos poucos fui o reconhecendo ao preencher o ovo, como se o barro, do qual o homem foi gerado segundo tantas histórias, também gerasse esse homem desconhecido, e que tantas vezes odiei, por gerar tantos traumas aos meus afetos.
Ao mesmo tempo lembrei-me dos Ovos Fabergé, pequenas relíquias feitas de materiais preciosos produzidos para czares da Rússia por volta do século XIX. A argila não é um material precioso, diga-se, é até barato e simples, porém seu processo, nessa reconstrução de memórias, possibilita um novo olhar sobre sua existência. As memórias se esvaem aos poucos em nossa mente, mas a argila, material tão perene, as reconstrói de maneira sólida.
Acrescentei aos pequenos ovos de argila, bases construídas no torno, um pouco rebuscadas, para darem suporte e carregarem, talvez, essas memórias de alguém que não conheci. As imagens pintadas nesses ovos, também cotidianas, assim como sua primeira função, podem ser relíquias do tempo, construídas com cuidadosas pinceladas. Da chaleira, pensei na salamandra que herdei e que uso em dias frios em meu ateliê. O pequeno marreco vem dessa memória que se constrói de meu avô: sempre que vejo um pato ou um marreco me lembro dele, como se sua memória estivesse presente nesses animais, e por fim também em em meu trabalho.
Fernanda Puricelli (nasceu e reside em Porto Alegre/RS) iniciou sua trajetória com a cerâmica em 2013, dentro da faculdade de Artes Visuais na UFRGS, na qual se formou em 2016. Apaixonada por essa técnica milenar que nos põe tanto em contato com nós mesmos, produz diversos objetos em argila, desde esculturas, utilitários e até jóias. Já elaborou duas exposições individuais, “Reminiscências” de 2016 (no Paço Municipal), pela qual recebeu o X Prêmio Açorianos em Destaque em Cerâmica, e “Nó: um olhar sobre as insignificâncias” em 2019 (no Centro-Histórico Cultural da Santa Casa).
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