Lucia Lombardi

Lucia Lombardi

Vaso Sagrado, 2019-2022
Escultura em cerâmica
Massa cerâmica, engobe externo e esmalte interno. Queimada em forno elétrico cone 7, (1240°C)
39 x 25 x 19 cm

Vaso Sagrado – Processos e reflexões:

Devaneio com a matéria durante os processos de amassar o barro, abro a placa e então começo a modelar, deixo secar um pouco a peça para a próxima etapa. Enquanto isto reciclo o barro, o faço por respeito ao planeta. O barro pode ser reciclado, mas levará milênios para se renovar. Organizo o espaço e observo as marcas deixadas pelo processo, o desenho formado nas lonas em que abri as placas. Fotografo, ainda não sei o que exatamente farei com as fotos, mas sei que o processo e suas marcas me interessam. De volta a peça, agora no ponto de couro macio, construo as texturas. Aplico de forma diferente o engobe para que remeta a ação do tempo, como uma casca caindo e converse com as texturas feitas. Secar, queimar. O ciclo da cerâmica e o tempo que se cria para ações e reflexões: Tempo da cerâmica.
Volto no tempo do começo. Há muito questionava-me sobre a identidade individual e coletiva. Quem sou eu? Você? Quem somos nós? Quem somos nós na relação com a matéria e os demais seres vivos deste planeta? Questão antiga, mas que até então era interna (e sei que coletiva). Então um evento pessoal foi gatilho de origem a processos através da arte:
Um dia encontrei uns 3 frutos muito pequenos, duros e cheio de texturas caídos no pátio da minha vó. Soube que era (para ser) a batata cará que havia caído do pé, morrido antes de se desenvolver. Cara-do-ar ou Cara-moela, um raro tubérculo que dá em ramas e não no solo. Por terem caído do pé e desidratado, mudaram a sua aparência num murchar que revelou nova e única textura. Percebia uma potência de vida que fora interrompida. Estas observações me trouxeram reflexões existenciais e estéticas, lembranças de experiências da vida e da morte.
Pensei na vida do meu pai, havia poucos anos que ele morrera prematuramente, com 44 anos. Olhando a planta em minhas mãos pensei na vida da natureza, que tanto sofria pela intervenção humana. Nesta época já haviam começado os questionamentos mais intensos sobre a preservação da natureza por alguns grupos, valor este que aprendi com meus pais, que foram trabalhadores da agricultora antes de irem para cidade. Na nossa pequena horta e algumas árvores frutíferas, num pequeno pátio, aprendi a amar a natureza, cuidar para colher.
Guardei os “frutos” do meu achado. Comecei a trabalhar com eles através do barro, explorando de muitas formas, mas na época com menos consciência do que tenho hoje sobre o processo que vivia. Era a fase do fazer para vir a saber.
O fato é que aqueles elementos e reflexões influenciaram meu trabalho, fizeram parte em algumas esculturas de grande porte anos depois, parte da instalação. Incorporadas como o elemento vegetal do totem, emprestando seu formato e suas texturas. Na época, não contei sua história. Elas eram como uma pedra fundamental que me ajudava a lembrar daquelas questões e ainda outras que chegaram no desenrolar do processo: Cada vez mais pensando sobre nossa relação de vida com este planeta. Nós os racionais. Qual animal destrói a água essencial para vida e desequilibra, rumo a destruição, o habitat que lhe provê tudo que precisa? Pense nas árvores que nos proporcionam o oxigênio e recebem o gás carbônico em uma troca benéfica, mas que estão cada vez mais dizimadas. A ultima grande floresta, a Amazônica, ameaçada.
No desenrolar do trabalho, das texturas da batata, vieram os totens com as texturas e então a árvore se torna como que um totem simbólico de todo questionamento, vida e conexão. Começo a aprender sobre elas. O livro “a vida secreta das árvores” do engenheiro florestal Peter Wohlleben, que associa sua experiência as descobertas cientificas sobre estes seres surpreendentes, foi uma recente descoberta que compartilho e recomendo a leitura, assim como ele descobriu e relata, veremos que pouco sabemos sobre as árvores.
A conexão com meu trabalho artístico: o fato de fazer no barro é para mim como uma união de corpos, onde o nosso é o barro. Somos feitos de barro, respirando com a árvore. Referencias mitológicas de origem. São meus devaneios (aquilo que se passa na mente, nos bastidores, que muitas vezes fica apenas com o artista) que agora compartilho.
Esta peça que aqui exponho é como um pequeno vaso sagrado*, uma parte de uma árvore que alimentou e abrigou vidas em seu interior. Agora, já sem vida, ainda nutri o solo e a admiramos pela força que ainda tem. O Barro é o nosso corpo, um corpo que gera vida em seu interior. Ou, quem sabe, ela é aquele tronco de árvore que petrificou e se tornou memória eterna, como as pedras, trazendo a memória e o conhecimento da terra, a memória ancestral.

*Vaso sagrado faz referencia aos mitos indígenas brasileiro, que associa o uso do barro com o corpo feminino. Valorização do sagrado, feminino e selvagem natural que por isto aqui associo com o corpo da árvore.

Lucia Lombardi

Lucia Lombardi, 1976, Guaíba/RS, Brasil. Vive e trabalha no Rio de Janeiro, Brasil.

Lucia Lombardi trabalha com o barro e cerâmica, explora engobes e texturas com relevos, inspiradas nas árvores como elemento simbólico da pesquisa dada pela questão (que se faz): “Quem somos nós? Ampliando para: Quem somos nós na relação com a matéria e os demais seres vivos deste planeta? O corpo da árvore e o nosso corpo – ar e terra (barro), por meio de escultura cerâmica e instalação.
Paralelamente inicia a pesquisa sobre processos criativos e a relação do design e o artesanato no Brasil, com foco em cerâmica, devido sua experiência e atuação neste meio desde 1998.
Especialista em Design de Produto pela UNEB em Salvador, 2008 e Bacharel em Artes Plásticas pelo Instituto de Artes da UFRGS, Porto Alegre, 2000. Exposição individual na Feevale em 2003, na Pinacoteca Barão de Santo Ângelo em 2000. Selecionada no 16º Salão de artes plásticas da câmara municipal de Porto Alegre em 2004. Diversas coletivas, dentre elas: Parque Lage Rio de Janeiro em 2016.
Atuou como designer no programa do Artesanato Brasileiro do SEBRAE no Rio Grande do Sul e Bahia, onde residiu por 10 anos. Hoje ministra cursos de formação e cursos livres, para ceramistas no seu ateliê em Botafogo, Rio de Janeiro.

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Instagram: lucialombardi.ceramica