A cerâmica, como arte do tempo, não revela em seus objetos todas suas antecedências. O que esta exposição procura é justamente dar visibilidade ao processo de criação, mostrar os pensamentos e reflexões que acontecem durante o percurso e trazer o lugar de trabalho e tudo aquilo que acompanha a construção do trabalho e permanece como presença oculta.
Vernissage dia 11 de julho às 18:00
Associação Chico Lisboa
Galeria do DMAE
R. 24 de Outubro, 200
Porto Alegre, RS
Em um só corpo
Quando as mãos sonham, elas produzem gestos. Quando elas tocam na argila, elas tocam esses gestos, construindo no corpo do barro a letra, o pensamento e a emoção resgatadas da memória de quem conhece o mundo pelo toque. Quando se está modelando, a existência passa a ter corpo e este corpo toca o artista, afetando-o, apaixonando-o e mobilizando-o.
Esses gestos produzem pensamentos, reflexões, propõem ao artista um posicionamento, um pensar-se no mundo e sobre o mundo. A argila é cheia de conversas silenciosas. Coisas da mão, do corpo e do tempo.
O corpo que toca e se deixa tocar, que entende a cerâmica como uma conversa entre dois corpos vivos produz pensamento. A cerâmica é o pensamento da mão e ela pode prescindir da razão, pode ser puro devaneio, sonho, irrealidade, mas essas podem ser mais reais que a própria realidade.
O objeto cerâmico, como objeto em si, não carrega necessariamente todo esse processo tão complexo, não traz à tona esse sonho da mão, apenas as marcas dessas conversações ficam presas na memoria do corpo da cerâmica. Os gestos estão presos para sempre na argila. A ancestralidade do barro, tudo o que antecedeu ao gesto que mobilizou o artista pede um tempo, vira apenas memória de um processo.
O sonho de quem faz cerâmica é tentar trazer um pouco para a peça a emoção do processo, revelando o devaneio da descoberta da mão, fazendo ouvir os sussurros, os murmúrios do toque e assim, trazer aquilo que acontece no tempo em que as coisas estão sendo feitas. Desta maneira, estabelece-se este ciclo de incompletude onde uma coisa leva à outra e constrói ou sugere outras e onde o vazio é necessário e o tempo passa a existir nesses intervalos. Portanto, percebemos nossa própria existência, sentindo o tempo no corpo, na umidade da peça, na flexibilidade da matéria. Se este tempo existe é porque ele nos toca e assim, também podemos tocar os outros, construindo o ciclo silencioso de afetos.
Esta exposição propõe justamente um desvelar de processos, não como relatórios técnicos ou descritivos, mas sim, como pensamento vivo e pulsante de cada artista. Por isso o texto junto ao trabalho. Ele não serve para explicar ou revelar segredos, nem tornar literária as intenções de cada artista, mas sim, preencher o vazio entre o objeto e o corpo do artista, resgatando o pensamento e a poesia que vem da manualidade.
A cerâmica como arte do tempo e das profundas transformações traz, na própria argila, a complexidade de todas as relações. O que chamamos de argila não é um suporte passivo produzido pelo homem; é sim, uma matéria instável e suscetível que está em constante transformação, fruto de um processo de intensa mudança, ou como escreve Sirlene Giannotti “(…) um fragmento de um processo em fluxo perpétuo de uma rede de eventos geológicos. Trata-se, portanto de uma matéria que pertence a uma ciranda de acontecimentos, onde água, ar, calor e tempo estão entrelaçados em uma dinâmica perpétua. Fazer cerâmica é, nesse sentido, intervir e acelerar o tempo geológico. Transformamos uma rocha sedimentar hiper hidratada (argila) em uma rocha magmática (cerâmica) (…)”1.
Rodrigo Núñez – curador
Dr em Poéticas visuais pela UFRGS
Prof do Departamento de Artes Visuais da UFRGS
1 GIANNOTTI, Sirlene M. Encantarias do sertão: percepção imaginativa e imaginação criadora na arte do barro de Maria Lira Marques. Tese. USP, São Paulo, p. 348, 2023.